sexta-feira

Os Putos deste tempo !!!

200 Anos Edgar Allam Poe

FERNANDO PESSOA
(1888-1935)

O CORVO

Numa meia-noite agreste,
quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de
ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o
que parecia
O som de alguém que batia
levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está
batendo a meus umbrais.
E só isso e nada mais.»
Ah, que bem disso me lembro!
Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro,
urdia sombras desiguais.
Como eu qu'ria a madrugada,
toda a noite aos livros dada
P'ra esquecer (em vão) a
amada, hoje entre hostes
celestiais —
Essa cujo nome sabem as
hostes celestiais,
Mas sem nome aqui
jamais!

Como, a tremer frio e frouxo,
cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos
terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo
força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada
aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada
em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já
nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou
senhora, decerto me
desculpais;
Mas eu ia adormecendo,
quando viestes batendo,
Tão levemente batendo,
batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos,
franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada
mais.

A treva enorme fitando,
fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando
que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz
profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um
nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o
eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo,
toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo
som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela
bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o
que são estes sinais.»
Meu coração se distraía
pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada
mais.»

Abri então a vidraça, e eis que,
com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo
dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento,
não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento
pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que
há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada
mais.

E esta ave estranha e escura
fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus
ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado»,
disse eu, «mas de nobre e
ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das
trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas
trevas infernais.»
Disse-me o corvo,
«Nunca mais».
Pasmei de ouvir este raro
pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido
tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que
ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido
pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que
há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca
mais».

Mas o corvo, sobre o busto,
nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a
alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento
fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento,
«Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram.
Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca
mais».

A alma súbito movida por frase
tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas
vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono,
que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da
alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp'rança de
seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura
sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do
alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei
de muita maneira
que qu'ria esta ave agoureira
dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos
maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca
mais».

Comigo isto discorrendo, mas
nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma
cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a
cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha
vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre
as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca
mais!

Fez-me então o ar mais denso,
como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves
passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te
Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te.
Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e
que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca
mais».

«Profeta», disse eu, «profeta —
ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos
somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se
no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre
hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as
hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca
mais».

«Que esse grito nos aparte, ave
ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade!
Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a
mentira que disseste!
Minha solidão me reste!Tira-te
de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca
mais».

E o corvo, na noite infinda, está
ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há
por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor
de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha
sombra no chão mais e mais,
E a minh'alma dessa sombra,
que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á... nunca
mais!

FERNANDO PESSOA
(1888-1935)
Versão original em Inglês de “O Corvo” por Edgar Allan Poe