segunda-feira

Menu de luxo na Assembleia da República


Menu de luxo na Assembleia da República

Perdiz, porco preto alimentado a bolota e lebre são alguns dos produtos exigidos pelo Caderno de Encargos do concurso público para fornecer refeições e explorar as cafetarias do Parlamento.

Por:Raquel Oliveira/ Sónia Trigueirão

Das exigências para a confecção das ementas de deputados e funcionários constam ainda pratos com bacalhau do Atlântico, pombo torcaz e rola, de acordo com o documento a que o CM teve ontem acesso. O café a fornecer deverá ser de "1ª qualidade" e os candidatos ao concurso têm ainda de oferecer quatro opções de whisky de 20 anos e oito de licores. No vinho, são exigidas 12 variedades de Verde e 15 de tintos alentejanos e do Douro.
É também especificado que o mesmo prato não deve ser repetido num prazo de duas semanas. O Caderno de Encargos do concurso, que termina em Junho, estabelece que a qualidade dos produtos vale 50%, o preço 30% e a manutenção 20%.

 
Carta de um menino pobre,

Cara amiga,

Não sei se a posso tratar assim, os meus estudos são poucos, como pouco é o comer em minha casa, não quero, de modo nenhum ofender, quem ocupa tão honroso lugar na casa que, os meus pobres Pais chamam a Casa da Democracia, e como não lhe quero roubar o seu precioso tempo na feitura dos Menus, com que honra os seus Clientes, passo rápidamente ao assunto.
Não sei se li bem, pois a minha instrução é pouca, o meu Pai só recebe 240 euros de um subsidio que não sei explicar qual é, mas atrevo-me a sugerir para o Menu de luxo da Casa da Democracia o seguinte:
Em vez de Perdiz, pois já existem tão poucas, e que são tão magrinhas, uns ratos saborosos do campo, que só diferem na plumagem.
Em vez de porco preto alimentado a bolotas, porque não quero ser racista, e a senhora muito menos, uns porcos brancos alimentados a excrementos que abundam pelos campos de pastagem.
Lebres, nem pensar correm muito, e teriam imensa dificuldade em as apanhar, talvez antes carne de belas vacas loucas ou porcos com brucelose, para ver se essas estúpidas doenças são exterminadas.
Exigir Bacalhau do Atlântico, é uma coisa que eu não sei, pois julgava que só havia bacalhau lá para a Terra Nova, mas podiam trocar por uma bela lampreia meia podre, que se encontram todos os dias nos rios, que V.Exas se esquecem de limpar.
Pombo sei o que é, mas com isso colocavam em perigo as comunicações com os povos distantes.
Torcaz, lá está outra coisa que não conheço, se tiver tempo gostaria que me explicasse como os apanhar, mas se a memória não me atraiçoa, é um passarote lindo que só se alimenta de boa merda, desde já o Bem Haja.
Rolas, nem sabem o que perdem por não substituirem por umas amorosas Gaivotas, que tão bem se alimentam de peixe e outras espécies que invadem as nossas lixeiras, que por falta de tempo nunca são limpas.
E chegados à sobremesa:
Café de 1ª, cara Senhora Presidente, nunca provou as borras de café que ficam na cafeteira azul da minha mãe, que ficam dia após dia a a sedimentar, depois é só juntar um pouco de água, quando há, pois nem sempre se têm as contas em dia com o aguadeiro.
Quatro qualidades de Whisky de 20 anos, não sabem o que perdem em não substituir essa mal cheirosa bebida, por uma feita pelo meu querido Pai, que para além de ter um cheiro agradável é feita com o primeiro xixi da manhã, mas cuidado têm que ser sempre com o primeiro da manhã.
Oito qualidades de licor, aí discuto, com educação, com a Senhora, deveria provar as oito qualidades do xixi da manhã feita pelos meus irmãos, que vêm empapado nuns trapos velhos a que chamam fraldas, que depois de espremidas dão um licor apetitoso.
Quanto ao vinho não se fala, todas as manhãs a minha querida mãe guarda parte do xixi da manha em grandes garrafões que colocados no exterior da casota feita de zinco e tábuas gamadas, ficam com uma coloração verdinha, é sem sombras de dúvidas o ideal.
Quanto aos vinhos tinto, o meu Avó faz uma mistura com caganitas de uma ovelha que pasta pelas redondezas, mas que se recusa a dizer o segredo, mas todos dizem que é divinal.
Mas cara Senhora nem tudo são facilidades, infelizmente não podemos variar o Ménu com a frequência que V.Exa deseja, pois cá em casa comemos todos os dia a mesma merda que a Senhora e os seus Clientes dessa casa nos permitem.
Quanto ao caderno de encargos não se preocupe, os 240 Euros do meu Pai dá para oferecer este delicioso Ménu á Casa da Democracia.
O meu Bem Haja pela compreensão, se aceitar o nosso Menú terei muito gosto em cagar para V.Exa, para assim poderem fazer um boa mousse de chocolate.

Uma familia pobre mas sem mordomias!

quinta-feira

O Teu Riso....

O Teu Riso

Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.

Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.

A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.

Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.

Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.

Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.

Pablo Neruda, in "Poemas de Amor de Pablo Neruda

segunda-feira

Eternos ausentes....


Eternos ausentes...

De pé esperei enquanto uma lágrima corria ao sabor do vento
aos poucos suavizei as minhas recordações
no fundo de um copo que estava sempre vazio
... na alegria dos rostos dos camaradas que esvoaçavam
como se fossem aves portadoras de amizade ou de recordações
o rosto fechado, vincado, anónimo por vezes
era visivel, no meio deste palco da vida
palco enorme

A quem eu sempre chamei o barco da noite escura
que avançaçava deixando na sua rota
os lábios dos que nos queriam
e através de um perfil préviamente traçado,
deixava cada vez mais longe as mulheres com cruxifixos
e braços espirituais...
as mulher como se fossem estátuas, ficavam
com o seu ser envolto em chamas, e
com gritos silenciosos, como se os gritos pudessem
ser silenciosos, gravados nas suas pupilas.

Mulher, Mãe, Amante, que não veio como a noite prometera
numa enorme nuvem que pairava sob as nossas cabeças...
ai o meu coração coberto de cinza e de carne estropiada
chorou imensamente por saber que não podia voltar....

A amante que ficou só algures no cais
castigada pelo destino
afogava ao mesmo tempo o seu amor na caveira
deste inferno carnal e desesperante!...

os anos passaram,
mas tal como as vossas, Mães, Mulheres ou Amantes

Eu também não vos esqueci!...


Homenagem aos meus CAMARADAS mortos em combate em Angola!
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domingo

Poema à Mãe


No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"