quarta-feira

Ainda em memória de Palma Inácio

LES BEAUX ESPIRITS S'ENCONTRE

DN/ Mário Soares

Em memória de Palma Inácio

Foi uma notícia muito dolorosa, apesar de esperada, a morte de Hermínio da Palma Inácio. Éramos amigos muito próximos - e camaradas - há dezenas de anos. Foi um herói, um verdadeiro mito, da resistência ao salazarismo.
Morreu pobre, desinteressado de bens materiais, ao cabo de longa doença, ajudado pelos amigos, que já mal conhecia.
Ouvi falar dele, pela primeira vez, quando do golpe frustrado, contra o salazarismo, de Abril de 1947, em que meu Pai também esteve envolvido. O célebre capitão Queiroga revoltou, no Porto, um regimento de carros de combate e, por falharem os apoios locais, dirigiu-se para o Sul, até à Mealhada, onde teve de se render.
Palma, então cabo da Força Aérea, mecânico e piloto, sabotou os aviões da base de Tires, como se comprometera.

Foram os únicos que cumpriram.

Preso, torturado e transferido depois para a Cadeia do Aljube, conseguiu fugir, o que parecia impossível. Foi um feito de extrema audácia, de que ouvi falar, com admiração, quando estive preso, com outros camaradas, nessa mesma cadeia, todos militantes do MUD Juvenil.
Mais tarde, soube que Palma Inácio, depois da fuga, se refugiara na casa de um proprietário rural, do Reguengo do Fetal, perto de Leiria, Cacela e Cunha, velho amigo de meu Pai, republicano, maçom e, depois do 25 de Abril, socialista.
Planeou sair por Leixões, do refúgio onde esteve alguns meses, clandestinamente, num barco de carga que o contratou para trabalhos humildes, em troca de comida e o levou, por caminhos vários, até ao Japão e, depois, à América. Uma enorme aventura! Quase um ano embarcado, conseguiu, embora sem passaporte, desembarcar. A referência que tinha na América era de um velho republicano, João Camoesas, exilado desde o começo da ditadura.
Foi ele que lhe valeu e lhe arranjou o primeiro emprego: piloto de aviões de recreio, mecânico e instrutor de pilotos amadores.
Palma Inácio tinha uma excepcional habilidade manual: fabricava passaportes na perfeição e concertava velhos carros e aviões... Ficou alguns anos na América, onde conseguiu amealhar algum pecúlio e ter uma vida desafogada. Fez bastantes amigos, portugueses e americanos.
Mas foi denunciado por um deles. A embaixada portuguesa pediu a extradição de Palma para Portugal. A América recusou. Mas exigiu que saísse do território americano. Refugiou--se, assim, no Brasil democrático de então (no Rio) onde foi acolhido pelos emigrantes políticos portugueses: o coronel Pio e o comandante Jaime de Morais, resistentes de grande prestígio junto das autoridades brasileiras. Foi um pouco mais tarde que conheceu Henrique Galvão e o general Humberto Delgado.
Palma Inácio estava então a meio da vida. Era um homem elegante, bem parecido, com um ar de gentleman farmer, requestado pelas brasileiras e bem instalado na vida...
No entanto, o rapto do Santa Maria, que seguiu de perto, levou-o de novo à conspiração política. Largou tudo e, com alguns amigos, resolveu ir para Marrocos, onde desviou um avião da TAP, que sobrevoou Lisboa e deixou cair manifestos denunciando mais uma das farsas eleitorais, organizadas por Salazar. Expulso de Marrocos, refugiou-se em França, onde planeou o assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz - que foi um sucesso imenso - para obter fundos para a Revolução.
Criou a Luar, uma organização revolucionária para derrubar o regime.
Pouco tempo depois foi preso de novo. Foi, nessa altura, que o conheci, tinha eu acabado de regressar da deportação em São Tomé. Uma irmã de Palma, casada com um inglês, procurou-me no escritório e transmitiu-me o seu desejo de que eu fosse seu advogado. Foi já nessa qualidade que o visitei na prisão de Caxias e o vi pela primeira vez. Perguntei-lhe como queria que organizasse a defesa. Respondeu-me, com um sorriso:
"Como entender, mas prolongue o meu julgamento até que chova a cântaros..." Percebi.
Entretanto, foi transferido para a Cadeia da PIDE, no Porto, porque o tribunal resolveu realizar o julgamento no Porto. Tive de substabelecer a procuração no meu amigo e colega Mário Cal Brandão.
Transmiti-lhe a mensagem. O julgamento prolongou-se com incidentes que se sucediam. Até que choveu. Palma, nessa madrugada, fugiu da PIDE do Porto, feito julgado inédito e impossível, que espantou toda a gente.
Na manhã seguinte, estava a preparar a tese que apresentei ao II Congresso Republicano de Aveiro, quando recebi um telefonema enigmático do meu escritório a dizer que estava lá um senhor que precisava urgentemente de me falar. Desconfiei do que se tratava.
Pedi-lhe que viesse a minha casa. A minha mulher preveniu-me:
"Cuidado, é uma armadilha da PIDE para te prender de novo." De facto, a televisão da noite anterior tinha dado, com destaque, a notícia da fuga de Palma, com a fotografia dele, apresentado como um perigoso meliante, prometendo uma grande recompensa para quem o tivesse visto e indicasse o seu paradeiro.
Quando chegou o emissário, que nunca tinha visto, percebi, pelo nervosismo e medo que demonstrava, que não era uma armadilha. Disse-me ser primo do Palma, o qual o tinha procurado, antes de entrar para o trabalho, pedindo-lhe que me pedisse dinheiro, porque não sabia onde se meter nem como se alimentar. Perguntei-lhe onde o deixara e
disse-me: num vão de escada de um prédio velho da Rua da Palma.
Não hesitei: resolvi ir buscá-lo. Fomos os dois, eu a guiar. Dei voltas para ver se estava a ser seguido. Certifiquei-me que não.
Encontrei o Palma no sítio indicado. Estava num estado lastimável: molhado até aos ossos, vestido com umas calças de ganga e uma camisa à pescador, com a barba de dois dias, esfomeado.
Instalei- -o no meu carro, despachei o primo, começámos a circular em direcção à estrada Marginal, sem saber ao certo ainda para onde o iria deixar. Para uma pensão, mal afamada, como ele queria, seria correr um risco tremendo. Seria preso em pouco tempo. Lembrei-me então do meu amigo José Fernandes Fafe, que habitava, com a família, em Cascais, numa moradia isolada.
Para aí me dirigi. A meio do caminho, precisamente em Carcavelos, havia uma brigada de trânsito a mandar parar os carros. Perguntei-lhe:
que fazemos?
Respondeu: não pare! Fiquei indeciso, aflito. Felizmente, não nos mandaram parar.
Respirámos de alívio!
Em casa do Fafe entrei sozinho. Estava a almoçar tranquilamente com a família. Mas percebeu, pela minha cara, que alguma coisa de grave se passava. Disse-lhe de imediato:
"Trago-te uma encomenda que deixei no carro. Posso mandá-la subir? São dois dias, não mais..."
Respondeu-me: "Não tenho coragem para te dizer que não."
Fi-lo subir e voltei para Lisboa. Disseram-me depois que ninguém mais almoçou. Senão ele. E, depois, deitou-se e dormiu até ao dia seguinte.
Entretanto, a minha mulher arranjou um fato meu e roupa, tirou-lhes todos os indícios que me pudessem referenciar.
Foi Catanho de Menezes, querido amigo, que levou a roupa a casa do Fafe. Mas arranjar-lhe um outro poiso foi mais difícil. Houve várias recusas. Finalmente o Fernando Oneto lembrou-se que o irmão do David Mourão Ferreira, o Jaime, tinha um pequeno apartamento, perto da penitenciária, onde tinha encontros galantes. Foi para aí que o Oneto levou o Palma, onde esteve quase um mês.
Ainda lá o fui ver uma vez, antes do Oneto o levar para perto da fronteira de Elvas, onde passou "a salto", pelo caminho dos contrabandistas e entrou clandestinamente em Espanha. Do lado de lá, estava Oneto à espera dele e, ambos, se dirigiram a Madrid, eufóricos...
Lembraram-se então de ir visitar um advogado que Oneto conhecia por meu intermédio, quando do caso Delgado, extremamente simpático, de seu nome Mariano Robles Romero-Robledo. O escritório estava vigiado pela polícia espanhola, que prendeu o Palma. Passou cerca de um ano em Carabanchel, a terrível prisão política do franquismo. A justiça portuguesa, que o considerava um preso comum (não
> político) pediu a extradição de Palma. Quem o defendeu, a meu pedido, foi o depois embaixador de Espanha em Lisboa, Raul Morodo, que impediu a extradição.
O então vice-presidente do Governo Italiano, Neni, oficiou ao Governo espanhol afirmando tratar-se de um preso político e que a Itália estava disposta a dar-lhe asilo político. Assim aconteceu.
Voltei a encontrar Palma Inácio, em Paris, estava eu já exilado e ele clandestino, em França. No entanto, era sócio de um clube chique de aviação onde alugava regularmente um bimotor para se treinar e dar umas voltas sobre Paris.
Levou-me um dia com ele, quando planeava realizar uma operação sobre Lisboa...
Ainda em Paris, apareceu-me uma noite o Adolfo Ayala, a dizer que o Palma tinha sido preso na Alemanha, por ter tido um desastre, quando trazia o carro cheio de armas compradas na Checoslováquia. Para além das armas, todos os documentos eram falsos. Foi Willy Brandt, então Chanceler, a quem recorri para o conseguir safar. Não foi nada fácil.
Foi depois disso que reentrou em Portugal e foi preso de novo na Covilhã, quando tinha planeado, com outros, dominar a cidade, por algumas horas. A "operação" não chegou a realizar-se. Foi encarcerado em Caxias, donde só saiu em 26 de Abril de 1974, depois da Revolução dos Cravos.
Palma Inácio ainda manteve uns tempos a Luar, como organização política. Mas não fazia sentido, uma vez conquistada a liberdade.
Assim o reconheceu o próprio Palma, passado o "Verão quente". Foi então que se inscreveu no Partido Socialista. Mas não foi fácil, apesar de ter o meu patrocínio, na altura secretário-geral.
Foi um militante activo e sempre discreto e cumpridor. Foi deputado pelo PS em duas legislaturas e membro da Assembleia Legislativa do Concelho de Lisboa.
Palma Inácio nunca foi um homem político, no sentido que se dá ao termo em democracia. Mas foi um homem com fortes convicções políticas e um militante activo e esforçado que lutou pelos seus ideais e pelas causas, que sempre foram as suas:
a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Um revolucionário activo, imaginativo, corajoso, consequente e pessoalmente desinteressado. Com um grande sentido da dignidade da honradez política, modesto, mas, ao mesmo tempo, com consciência e orgulho do que fez ao serviço da
Pátria, no tempo particularmente difícil em que viveu

PS: Muitos destes episódios foram passados com o meu saudoso Pai, talvez o principal, tenha sido o de Abril de 1947, em conjunto com o pai de Mário Soares, tinha eu 3 anos, e jamais esqueci a primeira bofetada que levei de um Pide, quando invadiram a casa dos meus pais á procura de documentos.

Uma História ? Ou antes uma Mensagem .......(1)

Era uma vez um amigo meu...

Um certo dia, um amigo meu abriu a gaveta da mesa de cabeceira da sua esposa e apanhou um pacote embrulhado em papel de arroz.
“Este - disse o meu amigo - não é um pacote qualquer, é uma peça íntima, uma lingerie finíssima”.

Abriu o pacote, jogou fora o papel, pegou na peça, e acariciou a seda macia e a renda.

“Ela comprou esta lingerie a primeira vez que estivemos em New Yorque..., uns 8 ou 9 anos atrás. Nunca a usou.” “Estava esperando o momento certo, a ocasião especial para poder usá-la.
Bom, acho que a hora chegou.”

Aproximou-se da cama e colocou a lingerie perto de outros objectos que levaria para o cemitério.
A sua esposa havia morrido de repente. O meu amigo olhou para mim e disse:
“Nunca guardes nada à espera de uma ocasião especial, cada dia que vivemos, é uma ocasião especial”.

Ainda estou pensando nas palavras que ele me disse e como mudaram a minha vida.

Agora leio mais, e dedico menos tempo à limpeza da casa. Sento-me na varanda e admiro a paisagem, sem reparar se o jardim tem ou não ervas daninhas.
Passo mais tempo em companhia da minha família e dos meus amigos, e bem menos tempo trabalhando para os outros.
Dei-me conta que a vida é um conjunto de experiências para serem apreciadas e não sobrevividas.
Agora já não guardo quase nada. Uso os copos de cristal todos os dias.Visto roupas novas para ir fazer compras no supermercado, se estiver com vontade de vesti-las.
Não guardo o melhor frasco de perfume para as festas especiais, mas uso quando quero sentir a sua fragrância.
As frases “um dia...” e “um dia destes...”, estão desaparecendo do meu vocabulário, se vale a pena ver e ouvir é agora. Não sei o que a esposa do meu amigo teria feito, se soubesse que não haveria amanhã, o mesmo “amanhã” que todos nós levamos tão pouco a sério. Se ela soubesse, talvez poderia ter falado com todos os seus familiares e amigos mais próximos. Ou, talvez, poderia ter chamado os velhos amigos para se desculpar, para fazer as pazes pelos mal entendidos do passado

Gosto de pensar que, ela poderia ter ido degustar o seu prato preferido naquele restaurante chinês que tanto gostava. São estas pequenas coisas da vida não cumpridas que me chateariam se soubesse que tenho as horas contadas. Chatear-me-ia pensar que deixei de abraçar os bons amigos que “um dia destes” reencontraria, Chatear-me-ia pensar que não escrevi as cartas que queria porque a intenção de escrevê-las era “um dias destes...”, Chatear-me-ia, e deixar-me-ia ainda mais triste, saber que deixei de dizer aos meus filhos e irmãos, com suficiente frequência, o quanto os amo.

Agora procuro não retardar, esquecer, ou conservar, algo mais que poderia acrescentar sorrisos de felicidade e alegria à minha vida. Cada dia que passa, digo para mim mesmo, que este é um dia muito especial. Cada dia, cada hora, cada minuto que passa... é especial

Enxerto do próximo livro: Histórias ou Mensagens